Cruzeiro a Vela – o “dia seguinte”

 

JOÃO CARLOS BRITO - joao@veleiro.net

O caso deles é típico: depois de 6 anos de trabalho duro o seu veleiro de oceano foi lançado na água. Seis meses depois, o casal iniciou um cruzeiro de “volta ao mundo”. Mas nem tudo correu como o previsto: após seis semanas eles resolveram dar um fim ao seu cruzeiro à vela e colocaram o barco à venda. “Nossos sentimentos estavam confusos”, eles confidenciaram a familiares. “Cada um de nós tinha um sonho favorito não realizado, um local que ele ou ela gostaria de ter visitado, uma tarefa a fazer. E nós nos sentimos embaraçados com a nossa “escapada” de uns anos que encolheu para 8 meses. Colocado desta forma, não parece que investimos bem o nosso dinheiro e nosso trabalho de 6 anos”. “Nós aproveitamos o máximo que pudemos agüentar; tivemos uma overdose de férias. Pode ser que não estivéssemos “de espírito livre” como acreditávamos; cada nova ilha a visitar oferecia somente um pouco a mais do que a anterior”. “Então os anseios retornaram para nosso lar em terra”.
Mudando o cenário para qualquer outro local, o sonho de velejar ao redor do mundo “contamina” muitas pessoas; adicione vários casais que economizam por anos com o objetivo de se aposentar e morar a bordo para logo em seguida venderem seus barcos; mude o tamanho ou tipo do barco ou as idades ou a experiência dos participantes e teremos uma história ouvida repetidamente: sonhos românticos de toda uma vida destruídos por uma depressão que tem encerrado a carreira de mais cruzeiristas do que todas as outras juntas.

“Eu não sabia exatamente o que estávamos procurando”, sentencia uma velejadora , depois que ela e seu marido decidiram colocar o barco à venda e retornar para casa. “Mas seja o que for, decididamente nós não encontramos no cruzeiro à vela”. Parecia que seria uma vida de sonho, mas avaliando agora, somente “parecia”. Claro que tivemos bons momentos, mas, a maior parte do tempo trabalhamos duro e nos sentimos miseráveis. Muito mais do que teríamos se tivéssemos permanecido em casa”. O marido complementa: “Nós começamos a implicar e competir um com o outro. Nunca nos demos conta que, para aproveitar a companhia do outro, precisamos ter períodos de separação dessa pessoa. Nós velejamos nos fins de semana por anos. Mas morar a bordo não é a mesma coisa”.

Os sintomas dessa depressão variam de pessoa para pessoa, mas, geralmente, se manifestam como uma tendência a ficar calado por longos períodos, seguida de um sentimento profundo de tristeza, no início sem causa específica e, depois, por qualquer motivo como: “Tudo está quebrando nesse barco”. Considerando o número de coisas que podem quebrar num barco, este fato poderia ser considerado como normal. Mas com o orçamento apertado, o custo e a dificuldade dos reparos constituem um pesadelo que permanece atormentando o cruzeirista enquanto o problema não é resolvido.

Com o dinheiro encurtando, os grandes supermercados ficam longe dos locais de ancoragem e as lojas das marinas cobram muito mais caro por tudo. O nosso dinheiro está sempre encurtando, mas, o que antes parecia um desafio, agora é motivo de desespero. O cruzeirista experiente parece que sempre acaba conseguindo o seu sustento, de uma forma ou de outra, geralmente proveniente de uma pequena aposentadoria ou do aluguel de imóveis ou ainda de pequenos trabalhos temporários. Mas agora que o barco necessita de reparos, não aparece nenhuma forma de ganhar dinheiro.

As pessoas deprimidas se tornam mais hostis e os outros cruzeiristas procuram se afastar de “sua cara zangada”. O deprimido tem a impressão de que era mais bem tratado pelos outros no seu bairro ou trabalho antigos.

“Tudo isso é somente para fugir da realidade” decreta o cruzeirista deprimido. Você nunca se deu conta de como era bom aquele “trabalho no escritório de 9 as 17”. Pequenas coisas como dar bom dia a todos pela manhã ou sua opinião ser ouvida pelo seu supervisor. E ver os velhos amigos e vizinhos das ruas que você morou por quase toda a vida. Quem quer fugir disto? Talvez o maior ensinamento do cruzeiro à vela seja a apreciação do “mundo real” que você pode, de outra maneira, julgar como opressivo.

Este último sintoma – o desejo de “retornar a realidade” - é o que a maioria dos cruzeiristas deprimidos apresenta e pode ser a chave para toda a sua aflição. Se você se der conta disso, pode começar a entender o porque dessa depressão.

Primeiro pergunte ao deprimido de onde ele tirou a idéia de que o cruzeiro à vela é uma fuga da realidade? Quem lhe ensinou isto? O que a expressão “fugir da realidade” significa exatamente? Cientistas e filósofos gastam boa parte de seus estudos tentando desvendar a natureza da realidade, mas, agora, o cruzeirista deprimido usa o termo indiscriminadamente e acha que todo mundo deve concordar com a sua tese. A “realidade” para eles é o modo como sempre viveram antes de morar a bordo, e, ao contrário do cruzeiro à vela, é a forma como a maioria dos membros de nossa cultura vivem. Representa ter um sólido emprego numa grande empresa sem grandes variações em relação ao que é considerado o normal pela nossa sociedade. Em outras palavras, “pertencer ao rebanho”.

A incoerência não é difícil de descobrir. O trio casa-carro-emprego com a sua rotina “de 9 às 17” é comum somente para uma porcentagem pequena da população mundial e está estabelecida há somente algumas centenas de anos. Se isto é realidade, o que aconteceu nos milhões de anos que precederam o nosso século pode ser considerado irreal?

Uma definição alternativa (e melhor) para a realidade pode ser encontrada em alguns de seus componentes….ar….luz do sol….vento….água....o movimento das ondas....as nuvens antes de uma tempestade. Esses elementos, ao contrário da rotina dos escritórios do século 21, estão aqui desde que a vida apareceu nesse planeta e continuarão a exercer a sua influência por muito tempo depois que os escritórios desaparecerem. Eles são percebidos por todos, não somente por um pequeno segmento da nossa sociedade avançada. Usando uma lógica primária, eles são muito mais “reais” do que os estilos de vida transitórios da civilização moderna para a qual os cruzeiristas deprimidos querem retornar.

Se for assim mesmo, concluímos que aqueles que buscam no cruzeiro à vela uma fuga da realidade, cometeram um equívoco na interpretação do que significa “velejar” e “realidade”. Velejar não é uma fuga, mas um retorno para, e um confronto com a realidade da qual a civilização moderna é que se constitui numa fuga. Por séculos, o homem sofreu com a realidade de um mundo que era às vezes muito escuro ou muito quente ou frio para o seu conforto e, para fugir disso, inventou complexos sistemas de iluminação, aquecimento ou refrigeração. O cruzeiro à vela promove um retorno à velha realidade de falta de luz, de calor ou frio. A civilização moderna descobriu o radio, a TV, cinema, bares e uma enorme variedade de entretenimento mecanizado para estimular nossos sentidos e ajudar-nos a escapar do aparente tédio da terra, do sol, dos ventos e das estrelas. O cruzeiro à vela promove um retorno a essa antiga realidade.

Para muitos cruzeiristas deprimidos o verdadeiro motivo da sua depressão é que eles pensaram na atividade como mais uma forma civilizada de estímulo, tal como no cinema ou nas apresentações esportivas e, de alguma forma, esperavam que o seu barco tivesse a obrigação de mantê-los excitados e entretidos. Mas, é claro, nenhum barco pode ser uma fonte inesgotável de diversão e não deve ser considerado como tal.

As expectativas geralmente são criadas nas velejadas de fim de semana, cujos prazeres são muito diferentes dos experimentados na vida a bordo rotineira. Num fim de semana, a depressão raramente se apresenta porque a velejada é, usualmente, um remédio para uma semana monótona de trabalho. O cruzeirista de fim de semana se deprime tal como o que mora a bordo, mas ela se manifesta em casa ou no trabalho, que ele culpa pela sua depressão. Quando ele se aposenta e decide morar a bordo, ele imagina que, a partir de agora, a vida será tal como naqueles fins de semana de verão. E, é claro, está enganado.

Não há como escapar do mecanismo da depressão. Ela resulta da perda de estímulos de prazer e é inevitável porque quanto mais estímulos de prazer você recebe, menos efetivo eles se tornam. Se, por exemplo, você recebe um presente inesperado em dinheiro na segunda-feira você fica estimulado. Se o mesmo presente é repetido na terça-feira, você fica estimulado também, mas menos do que no dia anterior pela repetição da experiência. Na quarta-feira, o estímulo é menor ainda e assim sucessivamente. No domingo se você não receber o presente que já estava esperando fica inesperadamente deprimido. Sua expectativa havia se ajustado “por cima” e, agora, tem que retroceder.

Essa mesma verdade se aplica ao cruzeiro à vela. Você pode admirar centenas de pores-do-sol, coqueiros se curvando na brisa oceânica, dias de lua cheia e vai ficando acostumado com essas belezas. Elas não mais o estimulam como antigamente. O estímulo externo se desgastou e a depressão então se instala. Este é o ponto onde o barco é vendido e os sonhos de cruzeiro são colocados de lado.

A cura para esta depressão está, em primeiro lugar, no reconhecimento de que a vida a bordo não é uma “fuga da realidade” e sim, exatamente o contrário, o “retorno” a realidade. Em segundo lugar valorize o simples de cada dia: a sua auto-suficiência, o contato estreito com a natureza e seus elementos, as conversas inúteis, os dias improdutivos, um banho de água doce, a alegria das chegadas e a ansiedade das partidas. Em terceiro, preencha o vazio entre os grandes sonhos (volta ao mundo?) com pequenos (um bote novo, uma visita à Bahia), realizáveis em curto prazo.

Quando você se dá conta, durante uma longa travessia, que o mar, ora furioso, ora calmo, não se importa nem se altera se você estiver excitado ou aborrecido, deprimido ou eufórico, bem ou mal sucedido, até vivo ou morto, a sua depressão aparecerá na sua verdadeira perspectiva, muito pequena diante de tamanha “realidade”.